sábado, 17 de outubro de 2009

UM GRANDE SARILHO

Estava casado há já quarenta e quatro anos,que se completavam precisamente naquele dia. E ele,mais uma vez,se esquecera. Fora a nora que o lembrara. Mas ainda ia a tempo de comprar um ramo de flores para oferecer à sua velha companheira.
Mas como não me havia de esquecer,se ando para aqui atafulhado de preocupações? A casa,sempre a mesma,precisou de obras urgentes e fui eu quem as teve de pagar. Foi um grande rombo,como deve calcular. Depois,o meu filho,que tem um curso superior,ganha uma miséria. É a mulher que o tem de ajudar,porque eu pouco posso. Ela é professora e anda a ver se arranja colocação,mas o horário que lhe dão não serve,por causa da criança. Vai ter que esgravatar por outro lado. Tem de ser.
Enfim,um grande sarilho,como vê. É sempre a mesma coisa. Estão os pobres cada vez mais pobres,sentenciou,e lá foi,a correr,comprar um ramo de flores no supermercado,lá ao pé da porta.

sábado, 3 de outubro de 2009

TUDO DE BORLA

Aquela paisagem,novíssima para ele,encantara-o,seduzira-o. Não sabia para onde se virar,pois em muitos quadros ela se desdobrava,todos de ficar a eles preso.Era o amplo vale que a seus pés se abria. Era o vagaroso rio,a serpentear,que mansamente o cortava. Era a galeria de palmeiras e bananeiras que o alegrava.As bananeiras cresciam ao Deus-dará,com os pés-mães e os filhotes criando densas cortinas. As palmeiras,esguias,procuravam o céu. Eram os palácios de mergulhões,que não desejariam outro poleiro,pois, além de quartos,tinham mesa e roupa lavada,tudo de borla.Podia dizer-se que o vale era verde. Até o rio verde era,de reflexos e de constituição. Havia ainda um outro verde,um verde mais carregado,de outras palmeiras,não tão elegantes,ordenadas,muito apaparicadas. Eram nelas que os exímios trepeiros mostravam as suas habilidades,quando os cachos estavam a pedir que os fossem lá colher.A noite caía quase a pique. E o verde passava a tons violáceos,tudo muito a correr,que era urgente ir descansar.Era nesta altura que os embondeiros,que o punham especado,muito respeitador e um tanto temeroso,na sua frente,pareciam fantasmas de muitos braços. E os seus frutos,de pedúnculos compridos,lembravam ratazanas que eles usariam para mais amedrontar.Mas mal o sol acordava,de novo o vale se pintava de verde,de um verde mais verde. E os fantasmas e as ratazanas iam dormir.