quinta-feira, 29 de abril de 2010

A SUA DIGNIDADE

Uma espessa névoa os envolve,mas ainda se conseguem distinguir.Parecem espectros a desfilar,a acenar,a dizer que vão voltar.
O Clementino. magro,muito pálido,de cabelo ondulado,com maneiras de mulher. Prestava seviços domésticos nalgumas casas e andava de avental quando ia às compras. Alvo de dichotes,não se acanhava,repontando com voz de falsete,e,às vezes,muito irritado, por achar demasiada a impertinência. Tinha a sua dignidade. Gostava de ir ao cinema,mas nem aí o poupavam,mesmo em plena sessão. Era uma outra fita,esta inteiramente de graça.

terça-feira, 27 de abril de 2010

UM DECÁLOGO

Ele tinha um decálogo. Eram dez as qualidades que ela devia exibir. Só assim embarcaria.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

DESASTRE

Ai o meu rico lambedor. Era assim que ele chamava ao tinto,ou branco,tanto fazia,que costumava trazer na pasta. E a garrafa partira-se,dando origem a um regatozinho. A tristeza daquela cara,perante tal desastre.

domingo, 25 de abril de 2010

UMA FESTA

Era um rapazinho de cabelos loiros,revoltos,e de olhos muito vivos,espertos. Irrequieto,pouco parava em casa. Tinha lá o seu grupo,de que era o capitão. Saía,muitas vezes,descalço,manhã cedo. Também,muitas vezes,não vinha almoçar. Ele lá se arranjava. Fome é que não passava. Um desenrascado nato.Percorria a terra em permanente brincadeira. Nos jardins,era uma festa. E foi num deles que um turista,irresistivelmente, o fotografou. Compreende-se o interesse,o entusiasmo, do turista. Aquele miúdo,que teria,quando muito,seis ou sete anitos,era bem a Estátua da Liberdade. Camisa aberta,calções descaídos,pés nus,expressão de desafio. Prometia,não lhe restava a mínima dúvida,visto possuir fortes marcas do sucesso.

sábado, 24 de abril de 2010

PEDRAS

O professor não era de lá. Mas sendo pessoa muito interessada,conhecia todas as pedras com história lá da terra,e queria que os moços também as conhecessem. Gastava horas a olhar para elas. Não consta que tivesse convencido algum deles. Queriam eles lá saber das pedras. Era mesmo coisa de quem não tinha mais nada para fazer. Pedras. Não passavam disso mesmo,pedras.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

HISTÓRIAS E VOLTAS

Calcário aqui,em sítio tão interior,na vizinhança de assentadas de granitos e de xistos? Muitas voltas isto tem dado. Muitas histórias os calcários,granitos e xistos, têm para contar.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

CABEÇA DE FORA

Ah macacos sem vergonha. Escondiam-se por detrás das folhas das palmeiras,lá bem no alto. De vez em quando,punham a cabeça de fora,para bem depressa a recolher,parecendo gozar. Talvez soubessem que havia ordens para não os incomodar.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

BOA PAZ

Nunca vira tanta rola junta. Nem sabia,até,que as iria encontrar. Pois andavam lá em boa paz. Era bicho que não interessava.

terça-feira, 20 de abril de 2010

REMÉDIO

O preço do trigo andava muito cá por baixo. Assim não dá,diziam uns. Se ele subir,temos de comer menos,que remédio,diziam outros.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

UMA QUEIJADA

Estivera fraquinho,e o médico recomendara-lhe que, antes de ir para a cama,devia confortar-se com um cálice de bom vinho do Porto e com um bolo que se visse. Isto era,pelo menos,o que ele dizia e o que fazia, sem falhar uma vez sequer. Em Évora, foi uma queijada.

domingo, 18 de abril de 2010

NEVE EM ALCÁCER DO SAL

Olhem a neve a cair,em farrapinhos,ali em Alcácer do Sal. Até deu para brincar.

sábado, 17 de abril de 2010

RENTE AO CHÃO

Ah asas para que vos quero,e lá escapou a perdiz,quase rente ao chão,livrando-se de uma enfiada de chumbo.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ENCOMENDAS

Reformara-se,depois de muitos anos sentado a uma secretária mechendo em papéis. Um manga de alpaca. Nem parecia o mesmo,reconhecido,principalmente,pela mulher. Quem diria que estava ali um apicultor de se lhe tirar o chapéu? Não se produzia melhor mel lá na região. Mas não se ficara por aqui. Fizera-se um especialista em canas de pesca. Choviam encomendas.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

ZANGA

Pobres dos abibes. Diziam que não mereciam que se lhes atirasse,pois tinham pouco para comer. Mas ele,naquela tarde,não havia meio de encontrar uma perdiz ou um coelho,e foi o pobre casal que apanhou a zanga.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

MUITO DESCONFIADAS

Oh senhor Joaquim, que aves são aquelas? Que grandes elas são. Aquilo são abetardas. Teve sorte em as ver,assim tão próximas,pois são muito desconfiadas. Deram-se uns passos,e ah asas para que vos quero.

terça-feira, 13 de abril de 2010

DE QUALQUER MANEIRA

Oh amigo,não havia aqui uma casa? Havia sim senhor. Como é que você sabia,se não é daqui? Olhe para esta fotografia. Quando ela foi tirada estava cá. Pois estava. E que bem ela se vê. Quem é que fez essa fotografia? Foi alguém que andou por aqui de avião. Então já a gente não pode andar por aí de qualquer maneira? Isto até parece mentira. E agora estou eu a ver. Ali também estavam uns chaparros. Desapareceram para se fazer o caminho. Sim senhor,está-se sempre a aprender.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

REI DO CARVÃO

Não lagarvam as moças. Pudera,se elas eram filhas ali do rei do carvão.

domingo, 11 de abril de 2010

BAIRRISMOS

Esses bairrismos são,às vezes,de grande exagero. Dizia ele,para amesquinhar a terra ao lado da sua,que o que ela tinha de melhor era a estrada que as ligava.

sábado, 10 de abril de 2010

UM RAMO DE FLORES

O professor,já um quarentão,andava enlevado. Interrompia as aulas da mais que tudo,para lhe levar um ramo de flores. Os moços gozavam.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

DE EMENDA

À mesa,não se deve ler o jornal,foi o que acabara de ouvir,de pessoa muito respeitada. E assim,
nunca mais,ainda que o silêncio se arrastasse. Ficara-lhe de emenda.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

DISTÂNCIAS

O diabo da terra não havia meio de aparecer. É já ali,diziam-lhe. A pressa alonga as distâncias. Mas não só a pressa,que isto de distâncias tem muito que se lhe diga.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

POISOS

Ia estar uns tempos livre do patrão. E fizera-se à estrada,um longo trajecto,a pedir descanso. Pois entre tantos poisos,logo foi pousar num em que pousara o patrão.

terça-feira, 6 de abril de 2010

PREVISÕES

Parecia a árvore,ali tão desprotegida,naquela encruzilhada,ir ficar sem uma florinha branca,das muitas que a adornavam. É que tinham vindo ventos e chuva de arrasar. Pois podia dizer-se que nem uma florinha perdera. Vá-se lá fazer previsões.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

MAIS UMA PARTIDA

A vida estava-lhe a sair madrasta,pelo que o menino não devia ter saído de casa a correr. Foi mais uma partida que a vida lhe pregou. Não tivera culpa,coitado.

domingo, 4 de abril de 2010

DE NEGRO

Vira partir o marido para nunca mais. Pois foi como ela o tivesse acompanhado. E assim,para sempre de negro se vestiu.

sábado, 3 de abril de 2010

CAIS

Morrera-lhe o marido,um homem ao mar dedicado. Em sua memória,permanecia longas horas em cais.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

PERIGOSO

Era ele um confiado,um sem segundas intenções. Jogo franco,nada na manga,que assim é que bonito é. Muita surpresa foi colhendo ao longo da caminhada. Para que servia ter mais de uma cara? Parecia ser isso perigoso,por poderem as caras bulharem.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

ESGOTOS

O emaranhado de ramos,de trepadeiras,de ervas de todos os tamanhos,era tal, que lembrava aquilo uma pequena selva,e seria como numa selva os que por lá faziam pela vida. De aves,viam-se pombos,e ouviam-se galos,do resto, apenas chegavam vozes. Luz não havia. A água seria de poços,que a ribeira que por ali corria era de esgotos.