terça-feira, 29 de dezembro de 2009

CUIDADOS DA MAMÃ

Já não se estava em guerra,o que tinha sido um alívio,daqueles dos muito grandes. Ela findara,é certo,mas sentiam-se ainda sequelas suas. Entrara-se no seu rescaldo,que atingiu ainda muitos.Aquela mesa era uma prova evidente de que a carestia não se fora de todo,pelo menos nalguns cantos. Rondava por ali,com pezinhos de lã,com ares de se querer perpetuar. E ora veja-se se não era verdade. Pontificavam no cardápio três requintadas iguarias,quer dizer,alface, feijão dito colonial e manteiga de banha de porco.Ganharia um prémio o fotógrafo que tivesse registado,para a posteridade, a cara do anfitrião,deleitado com a excelência dos acepipes. Todo ele eram sorrisos de triunfo,quando,ele próprio,se encarregava do serviço,enchendo os pratos. Parecia estar a fornecer ambrósia.Para muitos,noutras mesas,seria,mesmo,ambrósia. Mas para aqueles moços,acabados de sair dos cuidados da mamã,aquilo não era mais do que ração de encarcerados. Estranharam muito,de inicio,é um facto,mas bem depressa se tiveram de resignar. Contribuiram para isso,um cágado que lhes ensinou a terem paciência,e um papagaio que não se cansava de lhes desejar bom apetite.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

PARECIA VOAR

Toda a gente sabe,ou devia saber,que se não deve mandriar,que se deve fazer pela vida,que a vida está lá à espera,muito nervosa,para ser vivida. E era o que aquela senhora estaria fazendo. Já não era nova,longe disso. Teria aí uns cinquenta ou sessenta anos,que isto de idades tem muito que se lhe diga. Toda ela se vestia de negro,de negro mais negro,da cabeça aos pés.Não se sabe o que ela teria vendido. Apenas se ouviu o que ela disse a alguém que lhe teria ficado com uma parte da sua mercadoria,o resto da qual,que ainda era muito,estava envolvido num pano,também negro,de negro mais negro,a servir de saco.Eu nunca mais esquecerei a senhora dona Maria e a dona Maria também não se irá esquecer de mim nunca mais. Pouco mais tempo ela ali se demorou,pois tinha lá, à sua espera,outras donas,Marias ou não. A pressa que ela levava,rua fora,ligeiramente a subir,merecia ter ficado registada. Parecia voar.

domingo, 27 de dezembro de 2009

DE CIGARRO NA MÃO DIREITA

O que se estava vendo era isto,mas já se vira isto muitas mais vezes. A idade rondará os setenta. O corpo é esguio,alto. As costas são direitas,que nem tábuas. A cabeça é pequena,como a de um passarinho. O cabelo é grisalho,levemente ondulado. O andar é lesto,ainda que tropeçado,talvez por assim ter saído.E ali ia ela,como sempre,de cigarro na mão direita. Dava um passo,aparentemente,inseguro,e levava o cigarro à boca. Dava um passo,recolhia a mão com o cigarro. Dava um passo,expelia o fumo. Dava um passo,levava o cigarro à boca. Isto,como uma máquina. As costas,sempre direitas,olhando em frente,imperturbável.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

QUEM VÊ CARAS...

Era um homem de meia idade. A sua cara não inspirava simpatia. Teria contribuído para isso uma ou outra palavra grosseira que se lhe ouvira.Naquela altura,esperava um transporte. Tinha junto de si uma cadeira de rodas,onde se sentava uma mulher sem uma das pernas. Quando o eléctrico chegou,os seus potentes braços facilmente deram conta do recado,içando cadeira e ocupante.Feito isto,sem ligar aos protestos de alguém que se estava sentindo muito incomodado com tal vizinhança,tratou de sentar a companheira num dos bancos. Imperturbável,veio desmanchar,com presteza, a cadeira,ficando na plataforma até vagar o lugar ao lado da mulher.E então,aconteceu o inesperado. Aquela cara, que parecia trancada, abriu-se em largos , meigos sorrisos. Aqueles olhos,que pareciam turvos,ficaram límpidos,brilhantes. A ternura dele comovia. É bem certo que quem vê caras não vê corações.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O MALANDRO

Os nenúfares tinham-se encarregado de atapetar a superfície daquela ampla lagoa. O enfeltrado era denso e só muito perto da margem é que a água se revelava. Algumas avezinhas saltitavam de uma folha para outra. O silêncio era rei. À volta,cactos-candelabro faziam sentinela. Ao longe,cortinas de papiros,com os seus penachos,lembravam cabeças tontas,desmazeladas. Era aquela imensidão a morada de famílias de crocodilos. A sua vida seria uma rotina se não tivessem peles. É que elas despertavam a cobiça de alguns. Ainda um deles se confessara uns dias antes. Então,quem lhe pôs o joelho nesse estado? Fora uma sorte. Por um triz,não estava ele,naquela altura,a contar o que lhe sucedera. O malandro ainda respirava. Uma noite inteira a verter sangue e ainda estava vivo. Quando o puxara,julgando que estivesse já morto,como lhe acontecera de outras vezes,o malandro ainda tivera forças para lhe deitar o dente. Não desistira. Apenas passara a ser mais cauteloso. Eram uma tentação aquelas ricas peles.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

SAUDADES

Naquela manhã,o ajudante era outro. Teria aí uns trinta anos. Naquele local,tinham ficado restos da anterior inundação,formando pequenas lagoas. Muito perto de uma delas,construira-se uma casa, a sua casa. Era ali que as nuvens de mosquitos eram mais densas. Porque viveria ali naquele sítio,sozinho? E a resposta veio,uma resposta,de alguma maneira, inesperada,para aquele que o estava a ouvir. Julgava ele que não se gastasse ali de tal sentimento.Não quisera ir com os outros por se ter afeiçoado àquele local . Criara-se ali. Sentia falta dele. Saudades dos tempos de quando era menino,evocações do passado,já um tanto distante.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O NOVELO

O senhor José,naquela altura,andava mais tranquilo,podia dizer-se,até, que estava a viver a melhor fase da sua já longa vida. Durante muitos anos,tudo o que fizera,melhor ou pior,deixara-o insatisfeito,angustiado mesmo. Ele não sabia o que era. Se continuasse assim,como parecia que assim viesse a suceder, o melhor seria fazer as malas e abalar definitivamente lá para onde se não regressa.Um dia,inesperadamente,e com muita admiração sua,descobriu que tinha jeito para fazer pequenas construções,usando pauzinhos de fósforo. Arranjou um canto lá no seu quarto e lá passava horas fabricando.As coisas que saíam das suas velhas mãos ,só visto. Eram casas de diversos tamanhos e feitios, eram barcos,grandes e pequenos,eram figuras de pessoas e de animais,eram carrinhos de muitos modelos,modernos e antigos,e até cenas do dia a dia. Ainda não tinha acabado uma peça,e já estava imaginando outra,num frenesim,como que impelido sabia ele lá porque força.Aquilo,pode dizer-se,quase se assemelhava a um vício. Chegava a levantar-se de noite,para iniciar ou mesmo fazer nova obra. Daí a razão de ter escolhido o canto lá do quarto,se não arriscava-se a perder a nova ideia.Divertia-se,era o que também se podia dizer,um divertimento claramente inofensivo,assim todos fossem. Chegava-se a admirar do seu engenho. Como era aquilo possível,se ele nunca tinha dado conta? O que poderia ter feito se tivesse começado mais cedo? Era capaz,até,de ter havido evolução,quem sabe? Teria tentado outros materiais,como o barro,a pedra,o metal. Talvez até tivesse experimentado a pintura.As pessoas têm muitas capacidades escondidas. O que é preciso é pegar numa ponta,mesmo a brincar. Depois,sem se querer,como que comandado, o novelo desata a desenrolar-se ,e é um nunca mais parar. Será capaz,até,de se ir desenrolando até à hora da partida,como tem sucedido a alguns,daqueles de se lhe tirar o chapéu.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

BAGAÇOS E PASSAS

Os cimos onde ele se demorou ,só vistos. Foi mesmo façanha de estarrecer. Muito podem,pois,enganar os começos.Numa manhã de bater o queixo,quando ele andava muito cá por baixo,comendo pão que o diabo amassou,desabafara,a modos que desconfiando das suas capacidades. Não sei como me tenho aguentado.Metia um grande dó olhar para ele,um corpo amarfanhado,quase transparente. Meio curvado,cara lívida,olhos encovados,era uma personifcação da derrota.Estou aqui,já ia alta a manhã,apenas com um bagaço e uma passa. Coisas só para dar um calorzinho aos ossos. Muitos outros dias não teriam arrancado melhor.A escalada foi meteórica. A apoiá-lo,não lhe faltaram dons,deve afirmar-se,em abono da verdade,dons excelentíssemos. Mas sem aqueles muitos bagaços e muitas passas não teria,com toda a certeza,chegado tão alto e lá permanecido.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A CARTEIRA VOARA

Via-se bem que a senhora estava confusa,mesmo muito confusa. Não contaria que uma coisa daquelas lhe tivesse acontecido. A ela,uma senhora tão prestimosa,tão amiga de ajudar. Não havia peditório de rua a que ela se escusasse. Sempre pronta,sempre entre aqueles que se adiantavam. Seria,talvez,a primeira a oferecer-se.E era vê-la,de saquinho na mão,em pontos estratégicos,ao sol,à chuva. Não ficava ali passiva,não. Estimulava as dádivas,com palavras adequadas. Seria, certamente,a que conseguia as maiores colheitas.Pois tinham-lhe ido à mala. Distraira-se e a carteira voara. Como fora aquilo possível? Onde teria estado o seu anjo da guarda,que sempre a acompanhara? Tê-lo-iam apanhado também distraído,já que,nos dias que correm,até os melhores anjos são tentados?Feita quase estátua,estátua de perplexidade,assim esteve por largo tempo. Esperaria algum milagre.Talvez o larápio se arrependesse. Esperaria,atendendo ao bem que tinha feito,que a carteira lhe caísse do céu.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

MUITAS MANIAS

No reino da bicharada,apareceu por lá,um dia,um cágado cego e mudo. Durante muito tempo,tiveram pena dele,desfazendo-se em repetidos cuidados e atenções. Mas,a certa altura,já muito próximo da partida para outro mundo,tudo mudou,o que não era de esperar. É que,repentinamente,deu-lhe para exibir muitas manias. Se fosse apenas uma,vá que não vá,ainda se tolerava. Quem as não tem? Mas assim tantas,era de perder a paciência e disposição para o aturar. Mas havia uma que dava vontade de rir e era o que muitos faziam,por não resistirem à cena. Então,não é que se julgava o maior saltador do reino? E isso,porque, certa vez ,depois de muito tentar,conseguira saltar um milímetro. Sou o maior,sou o maior,não se cansava ele de atroar os ares.Passou a ser,pois,motivo de grande chacota. Ele não dava conta,coitado. E assim permaneceu,até que se foi desta para melhor

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

UMA AJUDINHA

Era uma terra nem pequena,nem grande,uma terra asim assim,que ficava lá para o cabo do mundo,mas com comboio à porta. Nessa terra,havia três pessoas importantes,o comerciante João,o médico e o engenheiro.O senhor João ia,uma vez por outra, à capital,para se actualizar. Aquilo era um contar de novidades de estarrecer,no café central,à noite,depois dos trabalhos. Certa vez,o senhor João contou também uma aventura. Oh senhor João,se a sua mulher calha a saber,coitada dela? Não tem dúvida. Ela sabe muito bem que é só dela que eu gosto,ela está sempre em primeiro lugar.O médico não tinha mãos a medir,mas não na sua profissão. Como a gente lá da terra raramente estava doente e ele não era de se encostar às paredes,arranjara outros interesses. Ele era agente disto e daquilo,era era agricultor,ele era,acima de tudo,mecânico de viaturas. A terra era ponto obrigatório de passagem de tractores e de camionetas,que,frequentemente,tinham as suas mazelas,a necessitar de tratamento. E o médico intervinha,a dar uma ajudinha. Chegava a estender-se no chão,a examinar eixos e cambotas,ficando numa lástima.O engenheiro era o responsável de uma grande obra. Por tal motivo e por estar muito interessado em encarecer o seu complexo trabalho,era ele que pontificava. A grande obra iria custar metade do que estava previsto. É que ele sabia poupar. Hoje meti nos cofres da empresa um dinheirão,era a sua expressão favorita. Quem eram os ouvintes para daquilo duvidar? Mas parecia haver ali economias a mais,alguém teria feito mal as contas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

UMA SEMENTINHA

Uma vida humana desperdiçada em frivolidades,em ociosidade,é coisa muito,muito triste. As capacidades que em cada um moram,capacidades de mais valias,para usar uma expressão domingueira,à espera de serem aproveitadas. E é ainda mais triste quando se teve a sorte,ou o que se quiser chamar,de arranjar uma enxada,que muito poucos conseguem,a enxada da instrução. Naturalmente, a vida não é só trabalhar,como diria o senhor Francisco,pintor de tectos e de paredes. Mas o não trabalhar não deve assumir a prioridade. Fica mal,não é bonito.Tantas maneiras há de trabalhar,mesmo até não parecendo. Pensar nos outros,nas suas dificuldades,um modo simples de o fazer,sem gastos aparentes. Mas é muito triste gastar uma vida em questiúnculas,em malquerenças,em desencontros,em apagões,para não empregar termos mais violentos,que não é bom lembrar. Metem medo. Uma sementinha gasta-se,mas deixa uma ervinha,um arbusto,uma árvore ,que pode ser uma árvore gigante . Uma vida humana devia emitá-la. Seria bom que o fizesse.