segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

VOZ DOUTORAL

Não interessa como se chamava. Interessa é saber que,lá na turma,era ele,de longe, o mais lido. Que lhe importavam a matemática,as ciências,mesmo o português,com aquela horrível gramática? Nada,mesmo nada,ou melhor,o suficiente para não perder o ano.
É que os seus gostos eram muito outros. A cada passo,referia este ou aquele livro,citava esta ou aquela frase,resumia este ou aquele enredo. Os colegas admiravam-se de tanta sabedoria,de tanta precocidade,incapazes de o acompanhar. Nem isso,de resto,os movia,pois as matérias das aulas,em variedade e quantidade,não deixavam. Doutra maneira,como se havia de passar com boas notas?
Notas. Era superior a tais convenções. Os outros que decorassem aquelas mixórdias,que ele a isso não estava disposto. Havia de se arranjar mais tarde. Se os imitasse,como poderia estar a par das últimas edições,que ele se apressava a anunciar?
Adquiriu,assim,uma certa áurea entre a rapaziada,que muito o respeitava. Tinha prazer nisso,era bem evidente. Talvez,até,fosse o seu objectivo primeiro. Impressionar. Parecia não o preocupar o futuro. Ele saberia construí-lo.
E um dia,sumiu-se,sem dizer água vai. Constou que emigrara,para lá onde tinha família. Durante anos,viveu-se na expectativa de saber novas dele,que fossem o reflexo das suas muitas promessas. Talvez não se estivesse no lugar apropriado para as receber. Deviam andar por aí,
encantando outros. Mas não mais fora esquecida a sua figura. Sempre de capa e batina,o cabelo muito negro,puxado para trás. A voz era doutoral,de acordo,aliás,com a importância que dele irradiava.

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